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sexta-feira, 20 de agosto de 2010

O SEGREDO DE VALDINEI

Se você quer, você pode, acredite, tenha fé, Deus proverá.

Aquela pregação na ensolarada tarde de domingo era mais um sinal, mais um aviso dos céus, só poderia ser. O Pastor não ia assim, do nada, adivinhar todo o drama que Valdinei sofria, desde sempre, inconformado com as estatísticas mundiais apontando para um ínfimo número de pessoas que detém as grandes somas de dinheiro neste planeta.

Não importava se ele fosse um ex-vendedor de seguros e um atual vendedor de planos de saúde. Queria fazer parte desse universo seleto dos mega-abastados, fosse como fosse, ele queria a sua incalculável parte nesse quinhão.

Se VOCÊ QUER, VOCÊ PODE. Aquelas palavras vinham somar às preciosas informações que Valdinei obteve lendo o best seller ”O Segredo”. Ele queria ser rico, muito rico, queria muito, mais que tudo; então ele podia sim senhor. Estava decido. Ali, na igreja, diante do eloqüente Pastor e de Deus todo poderoso: Valdinei teria a vida farta e chique com que sempre sonhara. Uma vez decidido, certamente o universo conspirará ao seu favor, e Deus proverá.

Com um empréstimo que conseguiu no Banco, Valdinei deu entrada naquele carrão dos sonhos: simplesmente maravilhoso! Foi como descobriu o que era a felicidade: era dirigir um carro importado. Colou no vidro traseiro do possante um adesivo dizendo: foi Deus que me deu. Gastou toda a grana da quinzena num luxuoso restaurante e redefiniu: felicidade é comer e beber bem! Juntou as reservas da poupança, de toda uma vida, com um financiamento que descolou e comprou uma cobertura na zona nobre da cidade, de frente para o mar. Repensou e concluiu: felicidade é acordar todos os dias com a paisagem estonteante do vai-e-vem das ondas na praia!

Foram dias e dias de glória, de felicidade sem fim!

Mas o que o Pastor não disse para o Valdinei, e “O Segredo” também não, é que Deus não movimenta a nossa conta bancária, não faz transferências de valores, não deposita. E injusto demais seria se Ele o fizesse. A maioria dos seres humanos deste planeta não tem sequer dois pratos de comida por dia, e inúmeros outros têm apenas o relento como cobertor. Não contaram para o Valdinei que se os sonhos não forem minimamente viáveis, eles facilmente viram fantasias, que viram delírios, que viram megalomania... Esqueceram também de dizer para o pobre Valdinei que o segredo da vida é a dedicação, é a atitude otimista (sempre agregada ao comportamento pró-ativo sensato), é a perseverança, é trabalhar naquilo que ama... Um pouco de sorte e muita generosidade também ajudam.

Se simples fosse, se fácil fosse, as estatísticas de renda per capita mundiais obviamente seriam outras. Não acha?!

Fato é que, alguns meses depois, o novo-rico Valdinei vive assim: vendendo o almoço para comprar a janta. Ah!, mas ele ainda anda de carro importado por aí, fazendo caras e bocas, se achando. E ainda acorda com a inestimável visão do mar... Até quando a gente não sabe. As prestações estratosféricas da casa estão muito atrasadas e as do carro também.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O ESPELHO

Mal a mocidade lhe sorriu, ela viu-se assim: confinada a um quartinho sem janelas.

Todos os dias ele lhe trazia frutas, leite e mel. E ainda dava-lhe afago, mordia-lhe a maçã do rosto e afogava-se por entre suas pernas. Um mundo perfeito, ela pensava; certa de ser amada.


Assim foi até que um belo dia ele lhe trouxe um espelho.


No começo, olhou o objeto ressabiada, com medo de ver-se outra vez. Aos poucos encorajou-se: eram verdes os seus olhos, já nem lembrava.


Agora, ela passava todo o seu tempo numa busca incansável de reflexão. Vendo-se, revendo-se e espelhando: as paredes, os móveis, os cantos e os vazios.


Então, ele passou a levar-lhe frutas, leite, mel e espelhos; certo de ser amado.


E ela reverberando o interior aqui, refletindo novos ângulos acolá, desvelando mais e mais os seus espaços.


Ampliando...


E assim foi até um dia que, em paralelo, ela abriu-se em asas e alcançou o infinito.


Certa de amar-se.

LIVRE

Depois do enterro, suspirou profunda e prazerosamente fechando a porta atrás de si.

De olhos úmidos, com o corpo arrepiado queimando numa febre repentina, passeou pelos cômodos acariciando cadeiras, paquerando esquinas, observando quadros e janelas, sentindo um alívio que não lembrava ter tido outro igual.


Há muito deixara de existir. Desde quando era pequena e achava que poderia ser tudo o que quisesse ser quando crescer.


Quando era pequena se sabia. Se deixava saber. Depois, vieram as despedidas. E depois, os esquecimentos. E mais depois, restaram as suspeitas. Cerceara tudo o que de mais seu pudesse ter. Fizera uma vida torta, uma vida outra, à margem do caminho.


Porque bem no fundo queria ser amada e aceita e recebida.


Tateou no escuro das lembranças tentando segurar uma imagem antiga que lembrava sua, e se perguntou se ainda conseguiria agarrá-la; se ainda teria tempo para soprar-lhe um pouco de vida. Um pouco da sua vida.


Morto o carrasco, tentaria.

SACRO OFÍCIO

A visão daquele pequeno vulto incomoda.

No reflexo, uma expressão sorridente. As mãos espalmadas no vidro do carro bagunçam as gotas de orvalho amanhecidas.


A névoa nublando os movimentos precisos e largos do menino. Pobre menino que brinca de polir o ofício que herdará das ruas.


Lustrando carros... e sabe-se lá que sonhos.

SAI DO MEU PÉ

Às vezes ela fica empanturrada de letras. Tanto, que arrota vírgulas e frases inteiras, vomita personagens e solta gazes de dois pontos. Não a deixam nem dormir. E, quando consegue, ainda sonha com elas.

Muitas vezes tem vontade de socar as têmporas, feito tirando água do mar represada no ouvido, para ver se escorregam lá de dentro o dicionário, a gramática e as idéias.


Outras vezes dá vontade de gritar bem alto: não me acompanha que eu não sou novela!, não me aluga que eu não sou CD de vídeo!, sai do meu pé, chulé!


Qual nada.

NO CAMPO DE SANTANA

Abaixou a cabeça para esfregar um cisco na lente de contato. O indicador no canto dos olhos, o cisco na palma do dedo. Aproveitou para uma puxadinha discreta na calcinha que apertava a virilha. De cabeça baixa, surpreendeu o blazer fechado num desnível de botões... Desde quando? Meio com vergonha consertou: reabrindo e reabotoando.

Há uns três metros vê um homem de cabeça baixa. Ao vento, os cabelos desgrenhados. Ele tenta fechar o zíper da calça surrada. Suspende os trapos de blusa, o botão escapa, o zíper emperra e a pele salta desnuda: as vergonhas de fora.


Ela saiu matutando pela rua... Parece que vivemos todos, de um jeito ou de outro, preocupados em cobrir nossas vergonhas. Empenhados em abotoar nossas existências.

LUZES GRIS

Ainda me perguntam porque acordo de mau humor.

Essa minha vida mais parece brincadeira de mau gosto: pega-pega, cabra cega, esconde-esconde. Só mesmo criança para achar graça nisso.


Nesses dias gris, tenho vontade de sumir, de mudar de cidade, de pele, de país, de planeta... Desintegrar. Virar poeira cósmica. Vagar lááá no infinito.


A verdade é que estou cansada de ser espectadora. Quero ser atriz principal deste maçante espetáculo tragicômico. Cansei de testemunhar o amor alheio, o sucesso alheio, a sorte alheia.


E você, protagonista que me indaga, acha que isso não dói?!


Quero a cena. Cadê a minha deixa?


Ei, senhor, quando será a minha vez?!


... E eu esperando...


alheia ao palco


... alheia à luz.

DO AVESSO

          Não bastasse a empregada ter faltado, o café ficou fraco. A lente de contato caiu no buraco da pia: teve que enfiar a mão no ralo. Lascou uma unha e o esmalte abriu-se em beiços. O sapato que combina com a blusa, sumiu. Botou o sutiã do avesso. A pasta de dente acabou. E o absorvente também. A torrada caiu com a manteiga virada para baixo. O cabelo está um horror. Engordou dois quilos. Apesar do pó compacto, o rosto parece uma canja de pés de galinha. Torceu o pé subindo no ônibus: quebrou o salto do sapato. O computador deu pau. O Aloísio não ligou. Mordeu uma pedra no feijão. O chefe estava de mau humor. O aumento não saiu. Era mais fácil dar nove horas da noite do que cinco e meia da tarde. O desodorante venceu.

          E mais isso agora!!! Um fio puxado do calcanhar até a bunda, na meia fina importada, novinha.

          Na Presidente Vargas, em frente à Central do Brasil, sentou no meio fio e chorou.